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Charlene Cabral
O mundo INACABADO:

Dois conjuntos de trabalhos, de feições coincidentes, compõem a exposição Chiasma, individual de Fernanda Valadares em cartaz na Galeria Ocre. São obras de série Backrooms – um corpo coeso, quadrado, concreto –, e da série A queda do céu, que de alguma forma rebatem a sua dureza. A artista trabalha com a milenar técnica da encáustica, utilizando como suporte o compensado naval, e as imagens que cria utilizando esses meios são limpas e equilibradas. Elas convidam aos sentidos, permitindo deixar a mente de fora. Seria possível vê-las sem fazer perguntas. 

No entanto, quem resolver inquietar-se por seus títulos (palavras não costumam ser inocentes) ou por seus detalhes compositivos – incluindo a coerente linha do horizonte e sua relação matemática com as demais linhas –, se verá em um lugar menos cômodo. O projeto de traços calculados e as camadas laboriosas de cera e tinta, responsáveis por sua execução, costumam honrar o tempo, que ocupa um lugar chave, como motivo e como método, na produção da artista. Ocorre que em Chiasma (cruzamento) esse tempo se embaralha. Isso porque as obras apontam para diferentes compassos de mundo, para modos de sonhar incompatíveis entre si e para o fatal apego ao pesadelo que ocupa o imaginário do capitaloceno. A série Backrooms remete a um tempo cíclico, de eterno retorno, que embora possa emular algo como uma mitologia contemporânea, de modo algum projeta o sagrado ou tece uma narrativa cosmogônica. Esses espaços liminares, que operam entre o desconhecido e o familiar, são como cubos contidos em si mesmos, sem escapatória, sem alívio, sem finalidade. E como costuma acontecer com os espaços em que a figura humana está ausente, é a humanidade – ou uma parcela dela – que se espelha em todos os cantos dessas construções. Nos Backrooms – ambientes assim nomeados a partir de uma lenda de terror nascida na internet – o tom labiríntico se liga à desorientação, mesmo que os cenários não nos sejam de fato estranhos. São caminhos que seduzem pela curiosidade em averiguar o que há a seguir, mas que se esgotam em sua única potencialidade: uma promessa oca. Como um recorte do mundo engenhado pelo que um dia se chamou, brutalmente, de civilização, os Backrooms são carentes dos quatro elementos que permitem a existência da vida em nosso planeta, eles isolam o acesso a estes na mesma medida em que dão a ilusão de uma escapatória. 

Mas os Backrooms criados por Fernanda Valadares possuem infiltrações. Uma espécie de matéria orgânica esverdeada se arrasta pelas frestas e esquinas, como um corpo estranho. Além dela, as “manchas” nas superfícies da imagem – que nos falam da matéria (cera) e do modo (calor) utilizados na encáustica –, são irregularidades que permitem lembrar que esses Backrooms de 80 x 80 cm são, antes de tudo, trabalhos de arte. E como tais, não se furtam à vontade de um sonho maior, que entende o pesadelo como processo de cura para aquilo que nos sobrepassa e que, depois, inventa uma chance de sonhar em positivo. 

O horizonte, habitual na produção da artista, se faz presente em Chiasma como a oferecer amparo. Em A queda do céu I – um políptico imponente, de mais de três metros de largura –, vemos blocos, talvez transportados dos Backrooms, simetricamente postos em uma paisagem resumida, formada por um plano, montes e um grande céu. Mas, aqui, essas construções são translúcidas, e ganham a cor do meio em que estão inseridas, sendo terrosas quando no chão, verdes quando nos montes e claras quando no céu. Ao mesmo tempo em que recebem, com força e beleza, a permeabilidade anunciada nas infiltrações dos Backrooms, são vias de mão única: blocos que absorvem uma paisagem oferecendo-lhe em troca somente presença imposta, em uma relação desigual. 

O nome A queda do céu não é casual, seu significado vem sendo conhecido no mundo dos brancos a partir das palavras do xamã yanomami David Kopenawa, publicadas no livro que leva esse título. Ela se refere a um “despencar no caos”, resultante da destruição da floresta pelos brancos, entre outras tantas destruições. Em A queda do céu II, obra que fecha a exposição, a construção humana desaparece, deixando apenas o que lhe é prévio. Mas esse horizonte parece visto por uma janela, quem sabe uma miragem daqueles que logram ver através das paredes dos Backrooms. Talvez o mundo civilizado, em crise e em flerte com o colapso, esteja por acabar; ou talvez exista uma chance de sonhá-lo como um mundo novo, ainda inacabado. 

 

Charlene Cabral

Curadora independente e pesquisadora. Doutoranda na FAUUSP, mestra em História, Crítica e Teoria da Arte pela ECA-USP, bacharela em História da Arte pela UFRGS. 

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