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Paula Braga
MIRAGENS no mar sem fundo:

    Enormes espaços sem delimitação, como salares, desertos ou mar aberto, invocam o vazio. Não há nada até onde a vista alcança. Há alguém que vivencia aquele vazio, mas a imensidão retira as bordas que definem a individualidade de quem está solto no vasto espaço. Podemos confrontar a vastidão por poucos instantes, afirmando-nos – eu, eu, eu – mas das duas, uma: ou vem a angústia ou vem a dissolução no todo. Como escreveu a artista Fernanda Valadares, “quando o vazio é inevitável, melhor ser o vazio. O vazio é inevitável. Sou-espaço.” 

    A esta sensação de ser o vazio imenso, Valadares chama de “estado de salar”, mote de suas grandes pinturas em encáustica que por volta de 2012 sugeriam, com a evanescente aparição de montanhas ao longe, um ir e vir, passando da dissolução de si no espaço ao retorno aos próprios contornos. A montanha dava a referência no vazio infinito, estava lá para voltarmos a ter forma, porque para nos sentirmos indivíduos bem definidos no espaço imenso da vida, precisamos de um outro, de uma montanha que, estando firme no espaço, interrompa o vazio. A montanha às vezes é uma outra pessoa – mas ela some muito rápido –, e às vezes pode ser uma obra de arte, que perdura em um tempo mais próximo do tempo da montanha do que do tempo humano individual.

    Fernanda Valadares trabalha com a duração estendida do fazer e da permanência da encáustica, técnica que confere à pintura a possibilidade de durar por milhares de anos. Lentamente, o calor do ferro quente derrete a cera, que vai se misturando ao pigmento e estabelecendo o jogo entre a vontade da cera e a vontade da artista, materializando uma superfície densa, paradoxalmente homogênea e salpicada de acontecimentos táteis e sensuais, indiferentes à frieza dos tons de branco e à assepsia das arquiteturas vazias reproduzidas nas obras da artista. As raspagens da cera e as pequenas bolhas que viram furinhos na superfície induzem no espectador o desejo de lamber aquela cremosidade sóbria, despindo a pintura das formas familiares de paredes e escadas, dissolvendo tudo na massa amorfa do “estado de salar”, para atingir  a camada de carne da existência.

    Na série Espejismo, a miragem mencionada nos títulos das pinturas talvez seja exatamente a ilusão que sustenta o dia-a-dia com salas, escadas, passagens, caminhos, conceitos, crenças que disfarçam a indiferenciação entre nós e a matéria bruta da vida, poupando-nos da experiência direta com a imensidão pungente. Nas paredes, às vezes há misteriosas montanhas que formam um horizonte que é também um rasgo que abre a fresta da desconfiança de que há um infinito atrás da superfície. Em outras pinturas, o vazio escuro da janela e o cômodo invisível para onde a escada conduz podem ser passagens para o sentimento oceânico de submersão no todo. 

    No primeiro capítulo de “O Mal-estar na Civilização”, Freud associa o sentimento oceânico de comunhão com o todo aos primórdios da vida psíquica quando, para o bebê, ainda não há a diferenciação entre o Eu e o mundo. O psiquismo, segundo o pai da psicanálise, é feito de camadas que se sobrepõem e coexistem – como em uma pintura em encáustica. Freud explica que, assim como escavando o solo da cidade de Roma encontramos a Roma de outras  épocas – e provavelmente pinturas romanas em encáustica –, mergulhando no psiquismo poderíamos encontrar o Eu de outras fases da formação da mente, e ter contato extemporâneo com o sentimento oceânico de dissolução no todo, de sentir-se uma coisa só com o mundo, indiferenciado dele. E isso pode ser tão dolorido quanto instigante, lembrando que Freud termina o capítulo sobre o “sentimento oceânico” citando os versos de Schiller: “Alegre-se, quem ainda respira na luz rósea”, alertando-nos de que não é fácil permanecer por muito tempo sentindo-se dissolvido e submerso no todo. 

    Na série Subversos de Fernanda Valadares, as montanhas pintadas em papel com a técnica da encáustica se espelham em miragem e mergulho. Seriam os subversos subversões ou submersões da ideia de universo? Imersas e invertidas, as montanhas invocam uma analogia entre o tempo geológico e o tempo da obra de arte: ambos são muito mais longos do que o nosso tempo de existência individual. Se entrarmos em “estado de salar” e nos dissolvermos na arte, perduraremos como a pintura em encáustica? Também em papel, a série Mira.gem é homenagem a Mira Schendel, a artista filósofa que existe para sempre. Provavelmente é isto o que queremos da arte: que ela seja montanha silenciosa, o outro de nós que provê  contornos no mar lindo e assustador da existência. 

 

Paula Braga, 2023

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