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Marília Panitz
Olhar ao longe, olhar de novo: Liberdade é pouco

...A evidência da passagem do tempo está no ato de fazer. Como procedimento, esse processo [da encáustica] é, em si, a prática de desaceleração, a relutância à velocidade desatenta do mundo contemporâneo e a lembrança da inevitável finitude de tudo o que teve início.
Fernanda Valadares


O tempo alargado, a espera, um olhar que se debruça sobre o quase vazio, porque encaramos a ausência do humano. O foco da obra de Fernanda Valadares são as construções (e aí, apelo para o sentido lato da palavra): arquitetura e geologia, geografia e arqueologia, ficção e documentação. E, por outro lado, é comentário do mundo. Seus espaços escolhidos são aqueles que alternam o claustrofóbico interior das edificações (onde a fonte primária da composição está sempre em imagens capturadas do universo da internet) e a assustadora imensidão das paisagens (sempre distantes, sempre isoladas, sempre desabitadas).
A cronologia aqui comparece por múltiplas abordagens, da mais simbólica (ou sintomática) à concretude do fazer. Estas são pinturas em encáustica, técnica milenar que se oferece como metáfora deste tempo maior, para além de nossos corpos: na execução, ela exige paciência, vagar, rigor e precisão em sua fatura; na existência (em seu testemunho do mundo), a história da arte nos permite traçar sua presença ancestral em obras do início de nossa civilização e que permanecem intactas. Há uma propriedade do aglutinante, a cera, que define a raridade de seus resultados na pintura. Isto parece sugerir uma pista para a escolha da artista: o efeito paradoxal da aparente transparência e da materialidade que ela apresenta, camadas sobrepostas que se fundem e deixam ver a arqueologia da obra, seus palimpsestos, talvez.
A adesão a esta técnica indica a estreita ligação com suas propostas poéticas e remonta a algumas obras que, de certa forma, se desdobram nas atuais agora expostas. O possível símbolo de sua escolha (desejo), poderia ser seu cubo de metal que contem, no interior de suas quatro faces, a pintura de um panorama em trezentos e sessenta graus, encarcerado. O ato: subir ao céu em um helicóptero (à maneira daquela visão de pássaro reivindicada em seu trabalho) e, de lá, lançar o cubo para que ele se abra ao colidir com o chão e a paisagem encontre a paisagem. (GRAVIDADE, de 2014)
A estrutura da mostra faz o jogo de abertura-encarceramento, em um movimento pendular que termina por confundir nossas certezas em relação aos dois polos.
A sequência formada pelos oito OUTEIROS [2024] propõe uma enumeração de elevações na linha do horizonte: Serra do Espinhaço, Serra do Cipó, Chapada Diamantina, Monte Roraima... todos capturados como registros de viagens, cujas fotos são projetadas sobre os grandes suportes de madeira, e transformadas em croquis). Tal configuração reflete outra série: a linha-sentença de CARCERI [2024], concebida a partir de imagens de diversos sistemas carcerários do mundo, presentes em sites oficiais das prisões. Azuis. Uma conversa com os desenhos de Giovanni Battista Piranesi, chamados “Invenzione capricciose di carceri”. Duas frases espaciais compostas, onde o dentro e o fora se constituem em paisagem, a depender do olhar (como aquele de seu fiel interlocutor de outros tempos).
O que, afinal, diferenciaria o pouso do nosso olhar em um interior desabitado e um panorama desértico, ambos pintados pela artista, além das diferentes distâncias? LA CHUTE DU CIEL [2023], seu diálogo com Davi Kopenawa traz a junção-sobreposição das duas esferas. O horizonte distante recortado em verde separa os dois campos, céu e terra, e cria o plano de fundo para receber à sua frente, em perspectiva, as tais colunas que impediriam a queda, vermelhas no campo da terra, translúcidas quando invadem o céu. Certa corporificação da metáfora. A segmentação da tela em frames de dimensões diversas dá a ideia de movimento e passagem de tempo (de resistência à captura da imagem). E marca a translação da solução (im)possível em poética da cura, se pensarmos no texto que provoca a obra.
Em uma paleta semelhante, é construída a série ISOLA-MENTOS [2024], que funde cárcere e horizonte. O conjunto de quadros em diferentes dimensões e organização não linear cria algo como um código de cenários insulares, usando como matéria prima as ilhas-prisões: Goli Otok, Christmas Island, Pulau Senang, San Lucas, Górgona etc. Céu verde, terra vermelha e água branca. Vistas na configuração proposta, elas simulam perspectiva (como se pudéssemos olhá-las todas em um só enquadramento, um arquipélago). Mas a variação de tamanhos não diz respeito somente ao projeto formal, também reflete o pensamento sobre as alterações espaço-temporais nas penas imputadas. Aqui, retorna a reflexão sobre os encarceramentos presentes em trabalhos anteriores, como em NINGUEM É UMA ILHA [2022] e MIGRAÇÃO [2014] (ou mesmo em CARCERI) como simbolismo revisitado para explorar as diferentes possibilidades de narrativas em torno da liberdade possível.
Distribuídos em linha reta, os BACKROOMS [2023] trazem um percurso labiríntico entre paredes, portas e corredores, capturados originalmente de um vídeo no YouTube, piloto para um game com viés de thriller. Tudo é quase o mesmo e, por isso, assustador. No espaço recriado em variações de brancos e beges, algumas das aberturas dão lugar ao escorrimento de um líquido verde (o que reveste o labirinto de concreto de um índice de vida, sua seiva? Aparições insuspeitas? A retomada da natureza dos espaços que dela foram tomados?) Assustador.
A articulação entre as obras da exposição incorpora alguns trabalhos pertencentes a outras séries, cuja função no atual conjunto é de pontuação. A PONTE DA AMIZADE (CHINA-NEPAL) [2015], pertencente ao grupo de pinturas de construções-ligações, aparece metaforizando aproximações extemporâneas, enquanto as obras selecionadas de ESPEJISMO [2022-2023] oferecem a visão de escadas nos ambientes retratados a partir de renders de espaços imobiliários, em propagandas on-line (outra construção-ligação). Já as GRUAS [2020] têm, em sua elaboração, uma diferença em relação aos outros trabalhos, pois aqui a fotografia impressa em papel de arroz é utilizada diretamente como base para a pintura (dispensando as fases e projeção e desenho, o que também acontece nas LITOLOGIAS [2016-2021]). Finalmente, uma nova versão de TRAPPED MINDS, cuja imagem figurativa é de arames farpados sobre fundo branco, aparece como lembrança daquilo que está em questão em todo o itinerário da mostra.
Em perspectiva, a obra de Fernanda Valadares percorre um caminho, temporal e espacialmente, que associa sua pintura tanto ao viés de pesquisa formal quanto ao da arte como discurso sobre a vida ao redor, do que ela é ao que poderia ser (como abordagem política). Na borda dos campos que separam a figuração da abstração, ela se move de forma a deixar muito claras as suas escolhas, sempre pelo mínimo, sempre pela precisão. O lugar, deslocado de seu contexto original, reconfigura-se constantemente. Afinal, literal ou metaforicamente, esta é uma artista viajante, que mora em suas pinturas.
 

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